CEM MIL ...
14/08/2020 - 12:08
Auto: AMMT /

CEM MIL ...

José Pedro Rodrigues Gonçalves

Chegamos a um número impensável de mortes. Cem mil pessoas perderam a vida nesta pandemia inadiministrável no Brasil. E apenas no Brasil ela tem sido inadiministrável.
Por quê? Resta perguntar.
Pela inação, pela insensibilidade, pela visão de mundo centrada em si mesmo por parte de muitos governantes, talvez a maioria deles, cujos olhos estão sempre voltados para as urnas cheias de votos e não para os devotos da vida, aqueles que vivem pensando no conjunto da sociedade. Os seres realmente humanos. Os não-seres, os que não desejam perceber que a vida é mais importante do que a economia, até porque se não houver pessoas vivas, não haverá quem possa comprar o que foi produzido. Simples assim! Mas os senhores do poder, esse poder podre, mal cheiroso, ignóbil e vil, constituindo uma parcela da sociedade que doura pílulas verbais para escamotear o que realmente sentem, quando ainda possuem algum sentimento.
Cem mil. Senhores! Sabem o que significa cem mil mortes?
Para muitos desses vetustos senhores apodrecidos e encastelados onde nunca deveriam estar, cem mil mortos? E daí? É o destino de todos, afirma com desprezo e arrogância, na ânsia de se inocentar de uma responsabilidade assumida perante o mundo inteiro. Essa é a obrigação/responsabilidade/compromisso de qualquer mandatário desta galáxia, menos no Brasil.
Aqui, a palavra dada é devolvida ao estômago no dia seguinte, pois deve ser de onde vem a palavra do mandatário suserano, aquele que vive em seu castelo de vento e soberba lá pelas bandas do Planalto Central.
Cem mil! Um número bem redondo, cheio de bolinhas esfericamente construídas, como se representando cada cabeça pensante consumida pelo corona vírus, que só não é pior do que aqueles que promovem a pandemia com suas omissões e irresponsabilidades, fingindo que não se trata de um problema que diz respeito à eles.
Por mais que se declarem inocentes, não o são; por mais que finjam não lhes caber reponsabilidades, delas nunca estiveram isentos. Qualquer bando, rebanho, alcateia, matilha, enxame, sempre há um líder que lidera o conjunto e mostra o caminho, o melhor caminho, em busca do melhor lugar para se alimentar, dessedentar ou encontrar o melhor néctar para fabricação do melhor mel para todos. Isso entre os animais ditos irracionais.
No Brasil, não! Cem mil mortos é a prova mais inconteste disso. Por aqui a coisa muda de figura. Cada qual em sua banda escura, na negrura de suas consciências, negam as ciências e sem nenhuma condescendência esgotam a nossa paciência e disseminam ocupantes de muitas sepulturas.
Na nossa história há uma certa repetição desse número “cem mil”. A última vez, certamente a primeira em minha vida, foi durante o enterro de Edson Luiz, aquele estudante fuzilado pela Ditadura no Restaurante onde, também, fazia minhas refeições cotidianamente, o Calabouço. Foi no seu enterro que cem mil pessoas, entre elas este modesto escrevinhador, que lá estava carregando uma montanha de esperanças e um tanto de incertezas, caminhamos desde a Cinelândia até o final de Botafogo. Perdido naquela multidão de mais de cem mil vivos que lutavam pela vida em liberdade, estava eu, perplexo, entristecido e comovido com a morte de um único brasileiro, mas que representava a essência dos jovens que queriam construir um Brasil para todos e não apenas para uma minoria.
O que dizer, agora, quando a equação se vê invertida?
Cem mil morreram para garantir o que?
Cem mil que apenas lutavam pela vida, pelo direito de acompanhar seus filhos, netos, companheiros, irmãos pais, mães, amigos no percurso de suas vidas, acalentando sonhos, construindo em seus imaginários um mundo melhor para si e para todos.
Cem mil mortos. Hecatombe nacional, massacre promovido por uma vírus e seus comparsas humanos, os novos suseranos em seus feudos fétidos a caminho do próprio fim, construído a cada dia pela impudica parceria entre a desvergonha e a pandemia.
Cem mil almas desmaterializadas pela ignominia oficial desta pátria amada que pretendem desalmar ao pretender trocar o verbo amar pelo armar.
Ah! Meu Brasil! O que foi feito dos poucos estadistas que tivemos? Embalsamados em museus e esquecidos. Abandonados e, hoje, perdidos no desvão da história. Só nos resta a triste memória da história mais recente. Um bando de impenitentes a desfiar louvores a própria catadura enquanto providencia mais uma sepultura.
Cem mil, pessoas destruídas, cuidadas por gente tão comprometida com a vida, mas faltou espaço, apoio e mais guarida à esses quase heróis do campo da saúde que dedicaram e dedicam incessantemente seu labor em defesa da vida, desafiando o fim da própria vida.
Cem mil cadáveres, as vezes insepultos, sem direito ao mínimo de luto para conter a infame investida do vírus corona contra nossa vida. Cansaço, destemor e paciência, são atributos desses cultores da ciência que desafiam, mais do que o vírus, a incompetência dos órgãos responsáveis, inscritos na Constituição, mas, esses senhores do poder são cegos/surdo/mudos e sem coração.


José Pedro Rodrigues Gonçalves
13/08/20 – Em outros cem mil 

FONTE: José Pedro Rodrigues Gonçalves
EDIÇÃO: AMMT